martes, 21 de agosto de 2007

da solidao

Ha muitas pessoas que sofrem do mal da solidao. Basta que em redor delas se arme o silencio, que nao se manifeste aos seus olhos nenhuma presenca humana, para que delas se apodere imensa angustia: como se o peso do ceu desabasse sobre a sua cabeca, como se dos horizontes levantasse o anuncio do fim do mundo.
No entanto, havera na terra verdadeira solidao? Nao estamos todos cercados por inumeros objetos, por infinitas formas da natureza e o nosso mundo particular nao esta cheio de lembrancas, de sonhos, de raciocinios, de ideias, que impedem uma total solidao?
Tudo e vivo e tudo fala, em redor de nos, embora com vida e voz que nao sao humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso proprio misterio. Como aquele Sultao Mamude que entendia a fala dos passaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse aparente vazio de solidao: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos.
Pintores e fotografos andam em volta dos objetos a procura de angulos, jogos de luz, eloquencia de formas, para revelar aquilo que lhes parece nao so o mais estatico dos seus aspectos, mas tambem o mais comunicavel, o mais rico de sugestoes o mais capaz de transmitir aquilo que excede os limites fisico desses objetos, constituindo, de certo modo, seu espirito e sua alma.
Facamo-nos tambem desse modo videntes: olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho das cadeiras, a transparencia das vidracas, os doceis panos tecidos sem amiores pretensoes. Nao procuremos neles a beleza que arrebata logo o olhar, o equilibrio delinhas a graca das proporcoes: muitas vezes seu aspecto - como o das criaturas humanas - e inabil e desajeitado. Mas nao e isso que procuramos, apenas: e o seu sentido intimo que tentamos discernir. Amemos nessas humildes coisas a carga de experiencias que representam, ea repercussao, nelas sensivel, de tanto trabalho humano, por infindaveis seculos.
Amemos o que sentimos de nos mesmos, nessas variadas coisas, ja que por egoistas que somos, nao sabemos amar senao aquilo em que nos encontramos. Amemos o antigo encantamento dos nossos olhos infantis, quando comecavam a descobrir o mundo: as nervuras das madeiras, com seus caminhos e bosques e ondas e horizontes; o desenho dos azulejos; o esmalte das loucas, os tranquilos, metodicos telhados... Amemos o rumor da agua que corre, os sons das maquinas, a inquieta voz dos animais, que desejariamos traduzir.
Tudo palpita em redor de nos, e e como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o coracao a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram seu segredo, suas memorias, suas silenciosas experiencias. A rosa que se despede de si mesma, o espeho onde pousa o nosso rosto, a fronha por onde se desenham os sonhos de quem dorme, tudo, tudo e um mundo com passado, presente, futuro, pelo qual transitamos atentos ou distraidos. Mundo delicado que nao se impoe com violencia: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso respeito; que espera que o descubramos, sem se anunciar nem pretender prevalecer; que pode ficar para sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir; que nao faz da sua presenca um anunicio exigente: "Estou aqui! estou aqui!" Mas, concentrado em sua essencia, so se revela quando os nossos sentidos estao aptos para o descobrirem. E que em silencio nos oferece sua multipla companhia, generosa e invisivel.
Oh! se vos queixais da solidao humana, prestai atencao, em redor de vos, a essa prestigiosa presenca, a essa copiosa linguagem que tudo transborda, e que conversara convosco interminavelmente.

Cecilia Meireles
in: escolha o seu sonho
circulo do livro - sao paulo - 1974

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